15/04/2007

eu, Fernanda Young e a parede

— psiu... não dá pra mudar de canal?
— estou meditando.
— meditando enquanto assiste Fernanda Young? fala sério.
— é um método que inventei. se conseguir ficar 30 segundos sem me irritar com essa patricinha-gothic-lolita-caipira vou subir um degrau no processo evolutivo.
— cruz credo! patricinha-gothic-lolita-caipira?
— ahn... tipo: representante da classe-média atormentada que desconhece o conceito de Freud que afirma que o sexo é dominante na etiologia de todas as neuroses. a ignorância desse aspecto básico na formação de qualquer indivíduo permite que o superego se oponha ao ego como uma espécie de consciência, criando a fantasia de que atitudes diversas possam demarcar alguma particularidade ou posicionamento inovador. se você observar, qualquer expressão humana está intimamente conectada ao fetiche sexual. os filmes de Quentin Tarantino e Almodóvar, as HQs de Frank Miller, as bençãos de Bento XVI no balcão da Basílica de São Pedro, Nietzsche e a Bossa Nova, não passam de iconografias eróticas em diferentes níveis. comportamentos como o de Fernanda Young, exibindo coturno, meiona, sainha, blusinha, cabelos curtos artificialmente pretos pintados com hena, pulseira, brinco, piercing, tatuagem, maquiagem by Robert Smith, do The Cure, reclamam para si o anúncio da transgressão, aridez e rejeição das convenções, percorrendo uma highway alternativa entorpecida de cocaína e repleta de nomes estranhos que fazem parte de uma encenação contracultural ou algo do gênero. na verdade, tudo não passa de um ritual de aproximação com seus pares que tem por finalidade o estímulo e a justificativa para o acasalamento. do princípio ao fim, a natureza humana gira simplesmente em torno da própria imagem refletida no espelho e deseja ardentemente por algo parecido com "esse corpinho merece ser comido!"
— hmns... você sabe mesmo como simplificar as coisas. isso até parece um déjà vu de O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder, adaptado para um vocabulário descolado de Segundo Caderno.
a língua é minha pátria e eu não tenho pátria. prosa caótica. ótica futura. samba-rap, chic-left com banana. tá craude brô.
— ih, surtou! é por isso que sou uma parede e, enquanto parede, me sinto realizada. você, ao contrário, só está querendo se exibir!
— foi você que começou.
— ué, natural. as paredes se comunicam com as pessoas o tempo todo. o que não é natural é a incursão doentia em diálogos estruturados com ponderações recíprocas. você devia saber dessas coisas. uma parede laranja transmite energia criativa ao ambiente; para instrospecção e tranquilidade é recomendado a cor azul; e por aí vai e por aí termina, sem maior grau de interlocução. contatos imediatos de terceiro grau é coisa que só existe entre o Spielberg e os extraterrestres! quadros e gravuras também podem servir para essa troca silenciosa. por exemplo: paisagens campestres e cenários naturalistas não apresentam nenhum tipo de intervenção entre o homem e o meio em que vive — nesse caso, fica claro que as paredes são a representação da incapacidade de abstração do seu dono. por outro lado, posters de arte, rock ou cinema demonstram a necessidade de transmutação através de códigos e signos que expressem as idiossincrasias e percepções mais íntimas. bom, uma parede com um pôster de Stanley Kubrick, Mondrian ou R.E.M., não pode receber o mesmo elogio de uma parede que exibe o Spock da Jornada nas Estrelas, Che Guevara ou a Sandy e Junior. enfim, fotografias também são legais. logicamente, não estou me referindo aquelas fotografias onde a caçula da família aparece sorridente fantasiada de Chapeuzinho Vermelho no carnaval de 1987. acredito que você entendeu o conceito. vai por mim, sei dessas coisas.
— por isso escolhi a cor gelo para pintar as paredes aqui de casa. um tom neutro, sem sugestões ou qualquer influência... tá ligada?
— essa sua atitude é preocupante. a cada dia que passa acentua-se o egocentrismo e o distanciamento de tudo que o cerca... tá ligado?
— se eu mudar de canal, promete permanecer em silêncio?
— jura? combinado!
— (suspiro!)
— ei! pára tudo! deixa nesse canal... adoro programas sobre decoração de ambientes!

— psiu... ei! está dormindo?
— hmns...
— você viu aquilo?
— hmmmmmmmmmns...
— acho que é uma lagartixa. você não faz idéia do inferno que uma lagartixa representa quando percorre a superfície lisa de uma parede. sinto cócegas e calafrios do rodapé até o forro. uma tortura chinesa, sem dúvida. não dá pra acender a luz?

Um comentário:

Saramar disse...

Você é genial, já vi.
E sem precisar de nenhuma moldura moderninha e pseudo-descolada.

beijo